Zé Ninguém: escuta a tua voz interior (W. Reich)
Muitos foram os grandes homens que te disseram: escuta a tua voz interior – segue a verdade do que sentes – venera o teu amor. Mas tu não destes atenção a tais palavras.
Foram palavras perdidas no deserto, apelos mortos no vazio do teu nada, Zé Ninguém.
Foi-te oferecida a escolha entre a exigência de superação do Übermensch de Nietzsche e a degradação do Üntermensch em Hitler. Berrando “Viva”, escolheste o Üntermensch!!!
Tiveste a escolha entre a elucidação de Freud da origem sexual das tuas perturbações emocionais e a sua teoria da adaptação cultural. Escolheste a sua filosofia cultural, que não te trazia qualquer apoio, e esqueceste a teoria sexual.
Pudeste escolher entre a magnificente simplicidade de Cristo e Paulo, com o seu celibato para os padres e o seu casamento indissolúvel. Escolheste o celibato e o casamento indissolúvel esquecendo a mulher simples que pariu seu filho, Jesus, apenas por amor.
Tiveste a escolha entre a concepção de Marx da produtividade do teu poder de trabalho como única fonte do valor dos produtos e a concepção de Estado. Esqueceste a tua força de trabalho e escolheste a idéia de Estado.
Durante a Revolução Francesa tinhas a escolher entre o cruel Robespierre e o grande Danton. Escolheste a crueldade e enclausuraste a grandeza de alma e a bondade.
Na Alemanha, tinhas a escolha entre Göering e Himmler, por um lado, e Liebknecht, Landau e Mühsam, no pólo oposto. Deste a Himmler o cargo de chefe de polícia e assassinaste os teus verdadeiros amigos.
Tinhas a escolher entre Julius Streicher e Walter Rathenau – assassinaste Rathenau.
Tinhas a escolher entre Lodge e Wilson - assassinaste Wilson.
Poderias ter escolhido entre a crueldade da Inquisição e a verdade de Galileu. Escolheste torturar Galileu, de cujas descobertas ainda hoje beneficias, submetendo-o a toda a espécie de humilhações, e, em pleno século XX, continuas a utilizar os mesmos métodos da Inquisição.
Tens a escolher entre a compreensão da doença mental e as terapêuticas de choque. Escolhes estas, de modo a não teres de enfrentar as dimensões monstruosas da tua própria miséria, preferindo a cegueira onde só de olhos bem abertos te poderias salvar.
Tens de escolher entre a ignorância da natureza da célula cancerosa e o que me foi possível desvendar dos seus segredos, a salvação possível de milhões de vidas humanas. Mas continuas a repetir as mesmas asneiras acerca do cancro em jornais e revistas, mantendo o silêncio sobre o que poderia salvar o teu filho, a tua mulher ou a tua mãe.
Morres de fome, mas defendes dos maometanos a sacralidade das tuas vacas, Zé Ninguém indiano.
Andas esfarrapado, Zé Ninguém de Itália e Eslavo de Trieste, mas o que mais parece ralar-te é saber se Trieste é “italiano” ou “eslavo”. Sempre pensei que Trieste fosse um porto internacional.
Enforcas os nazistas depois de terem assassinado milhões de pessoas. Onde é que estavas antes? Dezenas de cadáveres não bastam para fazer-te pensar, apenas milhões? Cada um destes atos mesquinhos dá sinal da tua monstruosidade de animal humano. Dizes: “Mas porque diabo levas tudo isto tão a sério? Sentes-te responsável por todo o mal?”
Esta é a questão que te condena.
Se tu, Zé Ninguém, saldo das fileiras de milhões como tu, tomasses a teu cargo apenas uma pequena parcela da tua responsabilidade, o mundo não seria o mesmo e todos os grandes que te estimam não seriam condenados à morte pela tua mesquinhez. É, porque não assumes qualquer responsabilidade que a tua casa assenta sobre areia. O teto abate-se sobre a tua cabeça, mas conservas a honra “proletária” ou “nacional”. O chão esvai-se-te debaixo dos pés, mas continuas a berrar: “viva, grande chefe, viva a Alemanha, a Rússia, o povo judeu!”
Os teus filhos agonizam, mas continuas a preconizar “a disciplina e a ordem” que lhes impões batendo. A tua mulher adoece, mas tu consideras que construir a tua casa sobre um rochedo não passa de mais uma “fantasia de judeu”.
Na tua enorme aflição vens ter comigo e dizes-me: “Meu Bom, Querido e Extraordinário Doutor! Que hei de fazer? A minha casa esboroa-se, o vento sopra-lhe dentro, a minha mulher e os meus filhos estão doentes e eu também. Que hei de fazer?” A resposta é: constrói a tua casa sobre um rochedo. Rochedo que és tu próprio, a tua própria natureza destorcida, o amor físico dos teus filhos, a esperança amorosa da tua mulher, o que esperavas da vida aos dezesseis anos. Troca as tuas ilusões por um pouco de verdade. Manda os teus políticos e diplomatas dar uma volta. Esquece o teu vizinho e escuta a tua própria voz – o teu vizinho fica-te grato. Diz aos teus camaradas de trabalho que desejas trabalhar em nome da vida, não ao serviço da morte. Não corras para assistir às execuções dos teus carrascos e vitimas, cria as leis que protegem a vida humana e os seus bens. Leis essas que serão os pilares de rocha viva onde assentares a tua casa. Protege o amor das crianças de tenra idade dos ataques de adultos lascivos e frustrados. Não aceites a solteirona intriguista - expõe publicamente os seus malefícios ou manda-a para o reformatório, em vez de lá abandonares adolescentes carecidos de afeto; se a tua posição profissional é de direção. Não tentes ser mais explorador que quem tenta explorar-te.
Deita fora as tuas calças de fantasia e o teu chapéu alto e não peças autorização oficial para amares a tua mulher. Contata com gentes de outros países, pois são teus semelhantes, no que tens de bom e de mau. Deixa, pois, que o teu filho cresça como a natureza (ou “Deus”) o gerou. Não tentes melhorar a natureza, mas antes entendê-la e protegê-la. Vai às bibliotecas em vez de ires assistir a espetáculos de competição, viaja por outros países em vez de ires a Coney Island. E, acima de tudo, procura PENSAR CORRECTAMENTE, ouve a tua voz interior e o seu murmúrio brando.
Tens a vida nas tuas mãos!!!
Não a entregues a outrem e muito menos aos chefes que elegeres.
SÊ TU PRÓPRIO!!! Muitos foram os grandes homens a propor-te.
“Ouçam este pequeno-burguês reacionário e individualista! O tipo desconhece a marcha inexorável da história. 'Conhece-te a ti próprio' – diz ele. A asneira burguesa do costume! O proletariado revolucionário mundial, conduzido pelo seu bem-amado chefe, pai de todos os povos, de todos os Russos, de todos os Eslavos, libertará o povo. Abaixo os individualistas e anarquistas!” E vivam os Paizinhos de todos os povos, de todos os Eslavos, Zé Ninguém!
Zé Ninguém... ouve bem agora, que tenho algumas predições graves a fazer-te: estás de fato em vias de te apropriares do mundo, o que te aterra. Durante séculos, irás assassinar os teus amigos e saudar como teus senhores os chefes de todos os povos, de todos os Russos. Dia após dia, semana após semana e década após década, louvarás senhor após senhor, esquecendo os gemidos dos teus filhos, ignorando a agonia dos teus adolescentes, as aspirações dos teus homens e mulheres, ou, se acaso os escutares, chamar-lhe-ás individualismo burguês. Em lugar de protegeres a vida, irás derramando o sangue atrás dos séculos, na crença de que apenas alcançarás a liberdade com o auxílio de carrascos – de novo e de novo enterrado na lama por tuas próprias mãos.
Continuarás através dos séculos a seguir embusteiros e energúmenos, cego e surdo ao apelo da VIDA, A TUA PRÓPRIA VIDA. Porque tu temes a vida, Zé Ninguém, e a destróis na crença de que o fazes em nome do “socialismo”, ou do “Estado”, ou da “honra nacional”, ou da “glória de Deus”.
Há algo, no entanto, que não sabes ou não queres saber: que és tu que geras a tua própria miséria, hora após hora, dia após dia; que não entendes os teus filhos e que tu próprio lhes partes a espinha antes de terem sequer uma oportunidade de desenvolver-se; que devoras o amor; que és avaro e ávido de poder; que mantém o cão preso para te sentires “dono”. Caminharás errante através dos séculos e estarás condenado à mesma morte em massa dos teus iguais no meio da miséria social generalizada; até que do horror da tua existência possa surgir-te um escasso núcleo de lucidez. Até que aprendas a buscar o teu verdadeiro amigo no homem de trabalho, de amor e de sabedoria, até que aprendas a entendê-lo e a respeitá-lo.
Entenderás então que mais importa para a verdadeira vida uma biblioteca que um desafio desportivo; o deambular pelo campo em meditação do que o exibir-se onde quer que seja; o poder de sarar do que o de morte; a saudável estima por si próprio do que a consciência nacional, e a humildade bem mais que a exaltação patriótica ou qualquer outra (REICH, 62-67).
REICH, Wilhelm. Escute zé-ninguém! Lisboa: Dom Quixote, 1974. 111p. Tradução: Maria de Fátima Bivar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário