domingo, 2 de junho de 2019

CELMA, Jules. Diário de um educastrador. São Paulo: Sammus, 1979.


CELMA, Jules. Diário de um educastrador.  São Paulo: Sammus, 1979.


As escolas «todas são perfeitos matadouros onde fornadas de garotos vão, cotidianamente, se fazer socializar, enquadrar, arregimentar, em uma palavra: "educar". Esses lugares lúgubres, esses templos de docilidade, de abdicação e de escravização enganam ainda uma multidão inumerável de pessoas, de educadores, de pais. O adulto, tendo perdido a consciência dos seus desejos primeiros, ignora a existência destes nos seus descendentes. Na nossa sociedade hierárquica, as pessoas se dividem em dois campos: os senhores e os escravos, os empregados e os empregadores, os poderosos e os fracos, os educadores e os educados. A educação é a mesma para todos. Aí se aprende aceitar essa visão do mundo. Uns tornar-se-ão Patrões, outros, Escravos. E preciso observar que esta distinção entre Patrões e Escravos não é tão nítida quanto parece. Cada um é um pouco Patrão de Alguém e sempre Escravo de alguma Coisa. Baseada na humilhação, na repressão, na igualação de todos em seres uniformes, idênticos nos seus desejos artificiais, idênticos nas suas neuroses, idênticos nos seus comportamentos, nas suas reações, a Educação aparece como um dos melhores pilares de nossas sociedades, uma das melhores garantias do Poder » (CELMA, 1979, p. 14).

«A vida tornou-se uma grande prostituição. Tudo se compra e tudo se vende. Os habitantes do planeta, transformados em objetos poeirentos, derivam em diferentes velocidades numa imensa estação de triagem, planificados pelo Poder» (CELMA,  1979, p. 15).

«A Escola tornou-se obrigatória e gratuita porque esta solução correspondia, então, aos interesses de classe da burguesia. O desenvolvimento econômico capitalista exigia uma mão-de-obra mais instruída; o mesmo que hoje em dia, industrializa o ensino superior. A justificação ideológica dessa política escolar do Poder não pode residir nesta piedosa Ideia de "cultura popular", neste sentimento demagógico de "educação das massas", no argumento vaticanista de "elevação do nível intelectual". Se é verdade que o desabrochar, a realização total do indivíduo passa, entre outros atos, pelo jogo do intelecto, não é menos verdade que esta necessidade não foi reconhecida e imediatamente desviada senão por preocupações de lucro» (CELMA, 1979, p. 15).

«Nosso potencial de vida, nosso desejo apaixonado de agir, de criar de ver, de ouvir, de amar, de fazer, de gozar, transformado, tão facilmente, em um meio de vida, em uma angústia em relação ao prazer, em uma agonia inconsciente, em um delírio mórbido» (CELMA, 1979, p. 16).
«Professores! O Poder está contente convosco! Vós merecestes, realmente, o seu reconhecimento! A Escola, O Liceu, a Faculdade: um pântano de mediocridade e inconsciência» (CELMA, 1979, p. 16).
«O Ensino é um meio de tranquilidade e segurança: um ambiente que seduz. Tranquilo porque aí nada se faz de muito humano! Aí, não se respeita nem mesmo sua própria natureza (o professor é, antes de tudo, um funcionário) nem a dos outros. De fato, como aceitar no outro o que, individualmente, não se permite a si próprio? Seguro, porque aí, as mudanças, os acontecimentos, às vezes são coriáceos» (CELMA, 1979, p. 17).
O professor: «Ele é o rei desbotado, aureolado por um sol que não existe. Sua dinâmica é simples: ele deve se apresentar aos olhos dos indivíduos como a perfeição social a ser atingida. Irrepreensível quanto ao hálito. Irrepreensível quanto ao comprimento dos cabelos. Irrepreensível quanto ao ambiente que frequenta, seus gestos, seus olhares.  Ele não tem, por assim dizer, gostos, desejos, paixões, salvo a de não tê-los (desejos, gostos, etc...). Toda curiosidade praticamente desapareceu. Toda inquietação se apagou num cérebro nebuloso que se sobressalta somente com a notícia do recebimento de um aumento. Ele está sempre sorridente. Nada parece perturbá-lo. Em uma palavra: ele é higiênico. É um reprimido sexual. É um reprimido total. Papai "Poder" e Mamãe "Ideologia" o educaram. Ele perdeu todas as suas esperanças, como todo mundo. [...] O único fator que o mantém vivo, biologicamente, é essa luta incessante que ele deve levar contra seus alunos. Isto o faze se mexer dentro de sua casca. No fim de alguns anos de serviços prestados à Nação, seu cérebro se habitua a esta agressividade recíproca. Ele adestra os animais. Ele ama o seu trabalho. É uma condecoração do Poder» (CELMA, 1979, p. 18-19)!
«As crianças são educadas por escravos que irão fabricar outros escravos, que fabricarão outros escravos nos matadouros elétricos. O produto desta vasta conspiração, deste ignóbil atentado à vida, é a "massa", a "população", a "opinião pública", a "imensa maioria das camadas da população", os “eleitores", os "boa gente", "os honestos trabalhadores, os "heroicos soldados da mãe pátria", as "maiorias silenciosas", os "condecorados por morte e por serviços prestados", "os alegres-turistas-trufistas-telespectadores"» (CELMA, 1979, p. 19).
«Os professores se auto-educam. É a imensa cadeia ininterrupta dos répteis Homo sapiens: cada um sufoca o seguinte e é sufocado pelo que o precede. A orquestra que dirige esse balé é composta de gordos senhores, com ou sem barba e que fumam charuto. "Vamos! Vamos!...2 vezes 1, 2; 2 vezes 2, 4... " Duas vezes tudo, nada» (CELMA, 1979, p. 19)!
«Acrescento que, nessa necessidade de se dobrar às estruturas, não existem bons ou maus educadores. Não existem educadores revolucionários, existem somente revolucionários que trabalham como educadores-castradores» (CELMA, 1979, p. 106).
«Nossa sociedade mercantil, coisificada, não tem outra prática educativa a não ser a de apresentar ao ser em estruturação a imagem do Homem-Objeto, do Homem-Robô, do Homem-Biológico. Não viver afetivamente, não reconhecer a necessidade e a importância das relações afetivas, é morrer. É ser "trabalho-Família-Pátria". É traumatizar, para sempre, a percepção que a criança tem da natureza humana. É impregnar os seus pensamentos, seus sonhos, seus músculos de doses de alienação, de reificação que ela deverá assumir por toda vida numa sociedade que vive e morrera disso» (CELMA, 1979, p. 105-106).
«A escola é uma parte da construção que o governo criou. É o Pode, todo Poder que é preciso destruir. Por meios que não estejam em contradição com os objetivos a serem atingidos, por métodos  que não reproduzam os esquema e estruturas que se quer destruir» (CELMA, 1979, p. 106).
«Será necessário recusar. É preciso recusar tudo. Tudo. Tudo o que existe, pois tudo está contaminado. É preciso ir o mais longe possível. Impor exigências as mais radicais, as mais totais. O campo do possível será infinito. A Aventura reaparecerá. Será preciso tudo recusar e estender esta recusa além da era do Velho Mundo, para suprimir os portadores de vírus ideológicos. A perseguição punitiva contra os moralizadores de todos os tipos, os conservadores das velhas coisas, dos velhos comportamentos, contra todos os chefes, animadores, especialistas, artistas e outros Adultos, deve se inscrever na consciência crítica de Todos. Desconfiemos! O poder cria a imagem de uma oposição revolucionária: a palhaçada leninizante, trotskizante, maoisante, Isto fede! Será preciso destruir» (CELMA, 1979, p. 107).
«Ora, nos recebemos de todos os séculos cristãos, dos quais alguns valem por dois, uma mentalidade particular da qual temos dificuldade de nos livrar. O homem é, em princípio, um pecador. Ele deve procurar se elevar. Donde uma hierarquização vertical dos valores humanos: deus, o Anjo, a Alma... etc... embaixo: A Besta, O Diabo, o Corpo... daí esta separação entre dois domínios, hoje ainda solidamente enraizada, mesmo nos não-católicos, mesmo  em muitos livres-pensadores: a criança tem em si as coisas que não são boas: a sexualidade, a agressividade, os apetites, que vêm do seu corpo. Estas tendências são más e é preciso reprimi-las. É preciso lhe inculcar o que lhe permitirá elevar. Assim, aplica-se à sua personalidade uma grandeza obrigatória » (CELMA, 1979, p. 126).
Assim se pronuncia Jules Celma (1979): «A Escola tornou-se obrigatória e gratuita porque esta solução correspondia, então, aos interesses de classe da burguesia. O desenvolvimento econômico capitalista exigia uma mão-de-obra mais instruída; o mesmo que hoje em dia, industrializa o ensino superior. A justificação ideológica dessa política escolar do Poder não pode residir nesta piedosa Ideia de "cultura popular", neste sentimento demagógico de "educação das massas", no argumento vaticanista de "elevação do nível intelectual". Se é verdade que o desabrochar, a realização total do indivíduo passa, entre outros atos, pelo jogo do intelecto, não é menos verdade que esta necessidade não foi reconhecida e imediatamente desviada senão por preocupações de lucro» (CELMA, 1979, p. 15).
De acordo com Jules Celma (1979), «o Ensino é um meio de tranquilidade e segurança: um ambiente que seduz. Tranquilo porque aí nada se faz de muito humano! Aí, não se respeita nem mesmo sua própria natureza (o professor é, antes de tudo, um funcionário) nem a dos outros. De fato, como aceitar no outro o que, individualmente, não se permite a si próprio? Seguro, porque aí, as mudanças, os acontecimentos, às vezes são coriáceos» (CELMA, 1979, p. 17).


CELMA, Jules. Diário de um educastrador.  São Paulo: Sammus, 1979.

ENGUITA, Mariano Fernández. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.


ENGUITA, Mariano Fernández. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 
«Em 1851, Taillandier, secretário geral do Ministério da Instrução Pública, em França, declarava: "Hoje em dia, um dos maiores interesses da civilização, em meio ao desenvolvimento imenso da indústria, é a educação dos operários, a educação moral mais que a educação técnica"» (MONIER, 1985, p, 162 apud ENGUITA, 1989, p. 113).
«Na base de toda a organização não é possível substituir a autoridade pela anarquia. É preciso, portanto, que o operário aprenda a vencer suas resistências naturais ao dever absoluto de obedecer, e isso é o que lhe ensinaremos nas Epinettes [...] A disciplina na oficina constitui a dignidade bem entendida do operário; a higiene e a previsão terminam por fazer dele um homem consumado» (CHARLOT & FIGEAT, 1985, p, 163 apud ENGUITA, 1989, p. 115).
«Em um folheto muito difundido de 1874, The theory of education in the United States of America, escrito por Harris e Doty, duas figuras da educação, e assinado por setenta e sete presidentes de centros universitários e superintendentes escolares dos estados, apontava-se que a precisão militar é necessária para o manejo das classes escolares. Insiste-se enormemente 1) na pontualidade, 2) na regularidade, 3) na atenção e 4) no silêncio como hábitos necessários ao longo da vida para a colaboração eficaz com os próprios companheiros em uma civilização industrial e comercial» (TYACK, 1974, p, 50 apud ENGUITA, 1989, p. 122).
Em 1851, em França, Taillandier, secretário geral do Ministério da Instrução Pública, declarava: «"Hoje em dia, um dos maiores interesses da civilização, em meio ao desenvolvimento imenso da indústria, é a educação dos operários, a educação moral mais que a educação técnica"» (MONIER, 1985, p, 162 apud ENGUITA, 1989, p. 113). Nos EUA, «em um folheto muito difundido, de 1874, The theory of education in the United States of America, escrito por Harris e Doty, duas figuras da educação, e assinado por setenta e sete presidentes de centros universitários e superintendentes escolares dos estados, apontava-se que a precisão militar é necessária para o manejo das classes escolares. Insiste-se enormemente 1) na pontualidade, 2) na regularidade, 3) na atenção e 4) no silêncio como hábitos necessários ao longo da vida para a colaboração eficaz com os próprios companheiros em uma civilização industrial e comercial» (TYACK, 1974, p, 50 apud ENGUITA, 1989, p. 122). Na Grã Bretanha, «uma investigação sobre as higher elementary schools, em 1906, (conforme a interpretação do Comitê Consultivo), pôs de manifesto que o que os patrões queriam dessas escolas era que formassem neles um bom caráter e lhes imbuíssem qualidades servis, à parte das destrezas gerais básicas» (REEDER, 1981, p, 74 apud ENGUITA, 1989, p. 116).
Franklin Bobbitt, citado por Enguita (1985), defendeu a introdução do taylorismo na organização do processo educacional, a partir dos seguintes princípios: «1) fixar as especificações e padrões do produto final que se deseja (o aluno egresso); 2) fixar as especificações e padrões para cada fase de elaboração do produto (matérias, anos acadêmicos, trimestres, dias ou unidades letivas); 3) empregar os métodos tayloristas para encontrar os métodos mais eficazes a respeito e assegurar que fossem seguidos pelos professores; 4) determinar, em função disso, as qualificações padronizadas exigidas pelos professores; 5) capacitá-los em consonância com isso, ou colocar requisitos de acesso tais que forçassem as instituições encarregadas disso a fazê-lo; 6) erigir uma formação permanente que mantivesse o professor à altura de suas atribuições durante sua permanência no trabalho; 7) dar-lhes instruções detalhadas sobre como realizar seu trabalho; 8) selecionar os meios materiais mais adequados; 9) traduzir todas as tarefas a realizar em responsabilidades individualizadas e exigíveis; e 11) controlar permanentemente o fluxo do "produto parcialmente desenvolvido", isso é, o aluno» (BOBBITT, 1913 apud ENGUITA, 1989, p. 127).
«Afinal o que se aprende na escola? Chega-se mais, ou menos longe, nos estudos, mas de qualquer forma se aprende a ler, a escrever, a contar. Assim, pois, algumas técnicas e muitas outras coisas ainda, incluídos alguns elementos (que podem ser rudimentares ou, ao contrário, profundos) de "cultura científica" ou "literária" diretamente utilizáveis nos diferentes postos de produção (uma instrução para os operários, outra para os técnicos, uma terceira para os engenheiros, uma última para os quadros superiores, etc.). Aprendem-se, portanto, certeza habilidades. Mas ao mesmo tempo, e também com o pretexto destas técnicas e destes conhecimentos, aprendem-se na escola as regras do "bom comportamento", isso é, da adequada atitude que deve observar, conforme o posto que está "destinado" a ocupar, toda "agente da divisão do trabalho": regras de moral, de consciência cívica e profissional, o que, falando claramente, significa regras a respeito da divisão técnico-social do trabalho e, enfim, regras da ordem estabelecida por meio da dominação de classe [...]. Para enunciar esse fato em uma linguagem mais científica, diremos que a reprodução da força de trabalho exige, não apenas uma reprodução de sua qualificação, mas também, e simultaneamente, uma reprodução de sua submissão às regras da ordem estabelecida, isso é, um reprodução de sua submissão à ideologia dominante [...]. Em outras palavras, a escola [...] ensina certas "habilidades", mas mediante formas que asseguram o submetimento à ideologia dominante, ou antes, o domínio de sua prática » (ALTHUSSER, 1977, p. 74-75 apud ENGUITA, 1989, p. 147-148).
«A segregação dos materiais ideológicos, as duas formas incompatíveis de inculcação da ideologia dominante em uma e outra rede produzem efeitos opostos: por um lado, os futuros proletários se lhes transmite um corpo compacto de ideias burguesas simples; por outro, os futuros burgueses aprendem, através de toda uma série de aprendizagens apropriadas, a converter-se (em pequena ou grande escala) em intérpretes, atores e elaboradores da ideologia burguesa. Evidentemente trata-se da mesma ideologia mas, entre o processo de inculcação na [escola] primária-profissional e o processo de inculcação na [escola] secundária-superior, existe a mesma diferença que entre o catecismo e a teologia» (BAUDELOT & ESTABLET, 1976, p. 139 apud ENGUITA, 1989, p. 148). BAUDELOT, CH. e ESTABLET, R. La escuela capitalista in Francia. Madrid, Siglo XXI, 1976.
Na obra La escuela capitalista in Francia (1976), Baudelot & Establet
«[...] Os aspectos formais, objetivos e cognitivamente orientados da escolarização captam tão-somente um fragmento das relações sociais cotidianas do encontro educacional [...]. Devemos considerar as escolas à luz das relações sócias da vida econômica. [...] Sugerimos que os aspectos principais da organização educacional são uma réplica das relações de domínio e subordinação na esfera econômica. A correspondência entre as relações sociais da escolarização e as do trabalho explica a capacidade do sistema educacional para produzir uma forma de trabalho submissa e fragmentada. A experiência da escolarização, e não meramente o conteúdo da aprendizagem formal é central nesse processo» (BOWLES & GINTIS, 1976, p. 125 apud ENGUITA, 1989, p. 151).
«A escola é uma instituição total de tempo parcial, cujos internos contam com tardes livres, fins de semana e férias anuais. Nenhuma outra instituição social, exceto os exércitos de serviço obrigatório – que não existem em todos os países nem afetam o gênero feminino – apresenta essa característica de enquadramento obrigatório de toda população. Outras instituições totais, das quais os internos não se podem livrar, tais como as prisões e os manicômios, afetam apenas a grupos proporcionalmente reduzidos – embora já se tornem bastante amplos – da população» (ENGUITA, 1989, p. 157).

ENGUITA, Mariano F. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.