sexta-feira, 31 de agosto de 2012


KAUTILYA – O “Maquiavel da Índia”

Tradução do francês de Sérgio Bath



A presente tradução é uma paráfrase de trechos selecionados do Arthashastra de Kautilya, o "Maquiavel da Índia", em linguagem vazada de forma a conquistar o interesse e o entendimento do leitor brasileiro. Uma linha de corte, pontilhada, marca o início e o fim de cada excerto. O tradutor baseou-se na 5.ª edição da versão inglesa por excelência, de R. Shamasastry, publicada em Mysore, em 1956 (Editora Sri Raghuveer), com uma introdução de J. F. Fleet.

Esse texto, Arthashastra, teria sido escrito entre 321 e 300 antes de Cristo. Seu autor, Kautilya, estadista indiano, primeiro-ministro do Rei Chandragupta.



ARTHASHASTRA


CAPÍTULO XV - As sessões do Conselho de Estado - (p. 96-98)

Uma vez que tenha firmado sua posição na afeição dos grupos locais e estrangeiros, tanto no seu próprio território como no estado inimigo, o soberano irá se ocupar da administração pública.

Todas as medidas administrativas serão precedidas pelas deliberações de um conselho bem formado. A agenda dessas reuniões será confidencial, e as discussões conduzidas em tal segredo que nem um simples pássaro as presencie -- porque se comenta que tais segredos já foram divulgados por papagaios, outras aves, cães, etc. Por isso, nunca se deve iniciar tais deliberações sem a certeza de que não serão reveladas ao público. E aquele que for culpado de tal violação deve ser executado.

O conhecimento das decisões tomadas poderá ser percebido pela observação de mudanças na atitude e na aparência das pessoas. Deve ser mantido total segredo sobre as deliberações do conselho, vigiando-se os que delas participarem até o momento de iniciar o trabalho projetado. Esse segredo pode ser revelado pela falta de cuidado, a embriaguez, palavras pronunciadas durante o sono ou encontros amorosos e outras indiscrições dos conselheiros.

As decisões do conselho poderão ser reveladas por quem se sentir desconsiderado, ou alimentar um propósito secreto. Contra esse perigo deverão ser tomadas precauções. A revelação das decisões tomadas pelo conselho só é vantajosa para pessoas fora do círculo do soberano e seus ministros.

"Por isso", diz um mestre, "o soberano deve decidir sozinho os assuntos secretos, pois os assessores têm seus próprios assessores, e estes também; esta sucessão de assessores leva à divulgação dos segredos.

"Assim, ninguém deverá conhecer os objetivos que o soberano tem em mente, a não ser os que estiverem incumbidos de executá-los, ao iniciar esses trabalhos ou ao concluí-los."

Diz outro mestre: "A deliberação por uma pessoa isolada não pode ter êxito. A natureza das tarefas de um soberano deve ser inferida de causas visíveis e também invisíveis. Ora, a percepção do que não é visível, a interpretação definitiva do que se vê, a solução das dúvidas a respeito do que sustenta duas opiniões divergentes, a inferência da totalidade, quando só uma parte é conhecida, tudo isso só pode ser decidido mediante a discussão em conselho. Por isso o soberano deverá deliberar com pessoas de mente aberta."

"Ouvirá a opinião de todos, sem desprezar qualquer uma, pois o sábio utiliza até mesmo o conselho de uma criança, quando é sensato."

Diz outro mestre: "Isto seria mera coleta de opiniões, não uma deliberação coletiva. O soberano perguntará a opinião de cada conselheiro sobre um trabalho semelhante ao que pretende executar, especulando sobre o que fazer e como enfrentar as conseqüências. E agirá de acordo com o que disserem. Deste modo, poderá ao mesmo tempo ouvir conselhos e manter segredo."

"Não é assim", diz outro mestre, "porque quando são interrogados sobre uma meta longínqua, os conselheiros reagem com indiferença ou opinam sem muito empenho. O soberano precisará consultar pessoas capazes de ter um julgamento decisivo sobre os trabalhos que pretende executar. Só assim receberá conselhos efetivos, além de confidenciais."

Para Kautilya, porém, essa busca de conselhos é infinita, nunca termina. O soberano deve consultar três ou quatro conselheiros. Em casos difíceis, a consulta a um único conselheiro pode não resultar em qualquer conclusão definitiva. Mas um conselheiro, isoladamente, responderá sempre de forma incisiva, sem hesitações. Ao deliberar com dois conselheiros, o soberano poderá sucumbir à sua influência combinada, ou então ser prejudicado por uma divergência entre eles. Com três ou quatro conselheiros, porém, o soberano alcançará resultados satisfatórios, sem grande dificuldade. Se os conselheiros são mais de quatro, a decisão só será alcançada depois de muito trabalho; e será mais difícil manter o segredo. Assim, segundo as circunstâncias de tempo e lugar, e a natureza do trabalho em questão, o soberano poderá decidir se convém deliberar sozinho ou com um ou dois conselheiros.

São os seguintes os cinco fatores de qualquer deliberação: os instrumentos para executar o trabalho, o comando de homens e meios em escala suficiente, o local e o tempo, a prevenção dos perigos e o êxito final.

O soberano poderá indagar opinião dos conselheiros, individual ou coletivamente, e avaliar a competência de cada um deles ao medir as razões que apresentem para sustentar seu parecer.

É preciso não perder tempo, quando surge a oportunidade. E também evitar longa deliberação com aqueles cujos aliados serão prejudicados pela decisão do soberano.

KAUTILYA. Arthashastra. (p. 77-119). In: ISÓCRATES. et al. Conselhos aos governantes. Brasilia: Senado Federal, 2000, 841p. (Coleção Clássicos da política).

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Maurício TRAGTENBERG - Administração, poder e ideologia


Administração, poder e ideologia

 (Maurício Tragtenberg)

«Um jovem executivo, que passou um bom período sujeito à disciplina da empresa, constitui excelente ‘quadro’ para o Estado. Esse é o papel ‘educativo’ da empresa» (1980, p. 10).

«Uma política autêntica de ‘formação’ deve dar liberdade de expressão aos ‘formandos’, ultrapassando o nível de aquisição de conhecimento, tendo em conta a maturidade humana e social» (1980, p. 35).

 «É um tipo de ‘formação’ a que estamos acostumados desde a infância. A universidade, a Igreja, a família, constiruem os grandes modelos deste tipo de formação. Isso se constitui, nas suas formas mais elementares, como um ‘saber em conserva’; esse tipo de formação ignora a dimensão grupal» (1980, p. 37).

«Isso leva à aproximação com o modelo escolar, privilegiando as relações entre cada aluno com o mestre, erigindo a competição em prícipio pedagógico absoluto. A organização da comunicação num sentido único, a utilização da disciplina, confirmam-no» (1980, p. 39).

«É a burocracia produto da organização e sua patologia. Isso é reproduzido na educação, onde o ensino tem muito de administrativo e ‘programado’. A rotina pedagógica não auxiliou os ‘administradores’ do ensinomamagir num sentido de renovação; a rigidez dos programas administrativos e das rotinas escolares é reflexo da organização do meio e da rigidez de comportamento e atitudes — produtos dessa ‘matriz’ burocrática. Ante esse quadro, uma postura tecnocrática não é solução» (1980, p. 43).

«O sistema de ensino é descrito em termos de ‘fluxo de entrada’ (dos alunos) e em termos de ‘fluxos de saída’, ‘produtos finais e produtos não-finais’ — adequação às necessidades, emprego e desemprego. A instrução é definida como produto de consumo» (1980, p. 43).

«A finalidade de qualquer educação é modelar a sociedade:  mais do que ser ensinado, o homem deve fazer sua educação de homem e cidadão, aprender a se informar, a se comunicar com o ‘outro’, a participar, a tornar-se capaz de devir numa sociedade em pleno devir, essa é a finalidade primeira da educação. Na escola do futuro trata-se de aprender a devir» (1980, p. 44).

«É crença dominante que a classe operária não se distingue da classe média. Mesmo que muitos operários se sintam parte integrante  das classes médias e mesmo que isso se dê pela renda, sua condição é de proletário: trabalho embrutecedor, produção dividida, ou divisão de trabalho, rigor do ritmo, frustrações intelectuais, alienação do indivíduo» (1980, p. 103).

 «Onde conquistaram o aparelho de Estado, os partidos ditos ‘comunistas’, longe de abolir a organização salarial e patriarcal do capital, consolidaram-no, racionalizaram-no, reproduziram-no ao infinito, em todas as áreas» (1980, p. 104).

 «O ensino, a religião, a psiquiatria, o esporte, a pornografia e o urbanismo no processo de estatização são verdadeiras indústrias de castração, onde os efeitos completam a escravidão assalariada e as relações de produção capitalistas» (1980, p. 107).

«O poder é uma droga afrodisíaca para aqueles que o exercem, e paralisante para aqueles que o sofrem. O Estado se perpetua, pois, na sua maneira de oprimir, criou dependências do poder, emocional, sexual e psíquicas, ligando os oprimidos aos opressores» (1980, p. 111).



TRAGTENBERG, Maurício. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Ática, 1980. 198p.