quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O Estado: a lei da violência como instituição

O Estado: a lei da violência como instituição

A força e a vigência do Estado tomam o nome de poder, o constrangimento organizado. Como ordem jurídica, tem o caráter de uma organização totalizante: o território não passa do âmbito espacial de aplicação da ordem jurídica e sua população uma simples esfera de aplicação pessoal da ordem jurídica estatal (Guerra Civil: Estado e  Trauma, Luis Mir, 2004).
As leis são regras feitas por pessoas que governam por meio da violência organizada que, quando não acatamos, podem fazer com que aqueles que se recusam a obedecê-las sofram pancadas, a perda da liberdade e até mesmo a morte (A Escravidão de nosso tempo, TOLSTOI, 1900)
 Hodiernamente aplicam-se infinitos conceitos, definições e aforismos a respeito de democracia, cidadania, política, constituição, povo, território, estado, pátria, nação, nacionalidade, direito e civilização.
No principio a razão de ser do Estado era justamente tornar os direitos eficazes aos cidadãos. Alguém se arrisca a identificar, dentre nos outros, um cidadão??? Bem, o Ministério da Educação, através de sua linguagem culta e oficial, adverte-nos afirmando que é um "individuo em pleno gozo dos direitos civis e políticos de um Estado".
Hoje o Estado transformou-se em seu antípoda é não se apresenta senão como  uma organização jurídica de coação da conduta humana, (Lembre-se de que as ditaduras, as tiranias, como se sabe, também são... Estados).
Os recursos naturais, ditos, por Direito, nacionais, são de propriedade legal de alguns particulares, naturalmente registradas em cartórios em nome de algum clã. Este imenso continente de nome Brasil está planejado para servir a um grupo  restrito e seus asseclas. O Estado não é público. Ele não é os seus indivíduos... apesar de, de quando em vez, aqui e acolá,algum indivíduo sempre se arvora no direito de afirmar que o estado sou eu... é um presidentezinho de república aqui, um ditadorzinho ali, um tiranozinho acolá , um reizinho mais além... sempre os há... e aí o Povo.... Ah... o povo...  esse sempre ‘foi um detalhe’ para o Estado segregacionista que esteve nos últimos quinhentos anos a ocultar – através do fenômeno da aculturação – ao índio, ao africano e ao mestiço a situação  discriminatória e subumana ao qual foram submetidos. Esse apartheid não lhes permitiu serem incorporados a mãe Pátria nem mesmo como seres humanos, uma vez que lhes são negados direitos fundamentais como alimentação e moradia. (Saúde, Educação... nem pensar).     
O Estado brasileiro encontra-se alienado do Povo e está acima dos Direitos. Acima do Bem e do Mal. Por encontrar-se pairando por sobre aquele individuo que seria seu cidadão o Estado se permite criatividade perversa. Cria sua própria Lei e Autoridade. Denominamos, aqui, autoridade o direito de obrigar alguém a fazer alguma coisa. Já sobre as Leis é bom que ouçamos Tolstoi quando afirma que
Não foram feitas para atender à vontade da maioria, mas sim à vontade daqueles que detêm o poder. Portanto elas serão sempre, e em toda parte, aquelas que mais vantagens possam trazer à classe dominante e aos poderosos. Em toda a parte e sempre, as leis são impostas utilizando os únicos meios capazes de fazer com que algumas pessoas se submetam à vontade de outras, isto é, pancadas, perda da liberdade e assassinato. Se as leis existem, é necessário que haja uma força capaz de fazer com que alguns seres se submetam à vontade de outros e esta força é a violência.
Dessa forma aquele Estado idealizado da razão, do Direito e do Cidadão é agora o Estado da Violência.  Onde quer que nos voltemos, descobriremos que a nossa vida é baseada na violência ou no medo que ela nos inspira.
Desde a mais tenra infância sofremos a violência doméstica – agressões físicas, estupros – dos nossos pais ou dos mais velhos. Em casa, na escola, na igreja com seus sacerdotes ou a autoridade divina, no escritório, nas fábricas, nos campos, nas lojas; é sempre a autoridade exercida por alguém que nos mantém submissos e nos leva a obedecer às suas ordens em prol da servidão à ‘Ordem e Progresso’.
Políticos, teólogos e poetas metafísicos se esforçam para idealizá-lo como o Estado defensor de todos os homens qualquer que seja a classe a que pertençam: homem livre ou escravo; rico ou pobre; opressor ou oprimido; nobre ou plebeu.    
Há problemas nas ruas, nos bairros periféricos e guetos das metrópoles??? Solução: aumentar o número de viaturas policiais. Vigiar. Repreender. Punir. Em nossa curta história de suplício étnico nada mudou. Os grupos de extermínio de hoje (chacina no Rio de Janeiro em abril de 2005: mais de trinta mortos) têm suas matrizes nos esquadrões da morte do regime cívico-militar que foram engendrados no regime fascista do Estado Novo que por sua vez nada mais fez que tornar legítima o controle policial da repressão social da Velha República (MIR. 2004)
Essa, apenas adaptou os jagunços e capitães-do-mato utilizados na ‘política interna’ durante a caminhada para Oeste, através das Entradas e Bandeiras cujo objetivo era o seqüestro dos aborígines além de ouro e pedras preciosas. O seqüestro de seres humanos como atividade econômica não surgiu de forma espontânea. É uma prática utilizada pela ‘política externa’ (se me permitem o uso desse termo) do Estado português, espanhol, inglês, etc... que a praticava contra os Povos Sudaneses e Bantos que originariamente eram moradores do Continente Africano.
Assim,  aqueles atores sociais – jagunços e capitães-do-mato – estão hoje nos carros velozes que patrulham as ruas das metrópoles e nos helicópteros que vasculham desde os céus. Eles compõem os órgãos externos evoluídos, os tentáculos do Leviatã, que jogavam suas redes por sobre o dorso nu de homens e mulheres tanto no Novo Mundo como na Mãe África e os ‘emigravam’ para suas sesmarias.    
A propósito desses homens e dessas mulheres e suas práticas do inicio do  século XVI. Houve evolução ou involução para o modelo atual??? O Estado-Nação democrata, de Constituição-cidadã que ora vivenciamos, implantado pelo ‘primado da Lei’ instituído em 5 de outubro de 1988 não é um Estado de Violência???
Seriam as Leis agora diferentes ou permanecem de acordo com a afirmação de Tolstoi??? O leitor poderia afirmar que tiramos um pé da lama da Barbárie e o apoiamos na Civilização??? Ou é o inverso??? Até o senhor Vladimir Ilyich Lênin, prezado por muitos leitores, que aguardaria ad eternum o ‘definhamento’ do Estado reconhece-o como sendo "uma máquina destinada a manter o domínio de uma classe sobre outra". Mudamos em cinco séculos???  Mudamos no último século desde  a publicação da A Escravidão de nosso tempo (TOLSTOI, 1900)???   
Dessa maneira nossa vida é uma torrente de medos. Esse fere nosso corpo e dilacera o nosso coração. A autoridade de Deus, da Igreja, da Nação, dos capitalistas e dos governantes está baseada no terror (BERKMAN, Alexander).
Bem, alguém pode recordar-se de que o próprio Freud explicava que a humanidade jamais seria feliz. Também não é necessário que cheguemos ao outro extremo: a prática da infelicidade diuturnamente é fatal.
Concordo que avancemos dialogando através dos conflitos... mas Leis para seqüestrar Povos em outros continentes... Leis para seqüestrar e exterminar Povos por aqui... Leis para segregar... não é demais??? Já não atingimos o limite do (in) suportável??? Haja elasticidade para este Estado organizador da coação do comportamento de seus súditos, não??? Haja elasticidade para os súditos...
 







REFERÊNCIAS:
TOLSTOI, Leon. A Escravidão de nosso tempo. 1900.
LENIN. V.I. O Estado e a revolução. 1917.
BERKMAN,  Alexander. A violência do mundo das leis (em O que é comunismo anarquista, 1962)
MIR, Luis. Guerra civil: Estado e  trauma. 2004


PS – sobre a crença na categoria “livre arbítrio”
Aos teólogos em geral e poetas metafísicos - que explicam o natural e real através do sobrenatural e irreal -  que tenham a crença no livre arbítrio, não os admiro por sua crença, por estarem convictos da existência de fato cuja veracidade não necessita comprovação alguma. Permito-me divergir dessa categoria: não estou convicto de que, aproximadamente, doze a quinze milhões de pessoas que residiam na África – UTILIZANDO-SE DE SEU LIVRE ARBITRIO – embarcaram e ‘partiram’,  por assim dizer, em um cruzeiro marítimo ao final do qual desembarcaram nas lindas praias da Terra de Santa Cruz, Haiti, Delta do Mississipi  e outras a fim de plantar cana, fumo e algodão, para encher os bolsos de ingleses, portugueses, espanhóis, etc, etc, etc...
A meu ver, estou convicto, sim, de que foi seqüestro seguido de escravidão, morte, genocídio, etc... Todo individuo (lembram-se do Cidadão???) que fez aquele deslocamento marítimo não estava em momento algum em "gozo de autoridade suprema e soberana sobre si mesmo para tomar uma decisão" (não é isso o  ‘livre arbítrio’ tão cantado em prosa e verso???).
Por conseguinte, o Estado tem demonstrado através dos tempos que é a Instituição  da Lei da Violência. Tenho dito...

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Paradigma Anarquista e a Educação Libertária

Paradigma Anarquista e a Educação Libertária

[...]  O princípio da autoridade na educação das crianças constitui o ponto de partida natural: ele é legítimo, necessário, quando é aplicado às crianças na primeira infância, quando sua inteligência ainda não se desenvolveu abertamente. Mas como o desenvolvimento de todas as coisas, e por conseqüência da educação, implica a negação sucessiva do ponto de partida, este princípio deve enfraquecer-se à medida que avançam a educação e a instrução, para dar lugar à liberdade ascendente (BAKUNIN).

O Anarquismo tem como concepção política-filosófica a atitude fundamental de negação a toda e qualquer autoridade e a afirmação da liberdade.
            O próprio ato de transformar essa atitude radical em um corpo doutrinário de idéias abstratas que possam vir a ser utilizadas em todas circunstâncias  seria já uma negação da liberdade.
            Dessa forma o Anarquismo não deve ser considerado senão como  um princípio gerador que de acordo com as condições sócio-históricas encontradas assume características particulares. O movimento de negação da autoridade e afirmação da liberdade que sustenta o pensamento anarquista é formado por quatro princípios básicos de teoria e de ação: autonomia individual, autogestão social, internacionalismo e ação direta.
            Autonomia individual: o indivíduo é a célula fundamental de qualquer grupo ou associação e a sociedade só existe enquanto agrupamento de indivíduos que a constroem sem que, no entanto percam sua condição de indivíduos  os quais não  podem ser preteridos em nome do grupo. A ação anarquista é essencialmente social, mas baseada em cada um dos indivíduos que compõem a sociedade, e voltada para cada um deles.
            Autogestão social: decorre do principio anterior que a liberdade individual é contrária ao Poder instituído. Contra quaisquer autoridades hierárquicas e associações assim constituídas. A gestão da sociedade deve ser direta, fruto dela própria. O anarquista é contrário à democracia representativa, onde determinado número de representantes é eleito para agir em nome da população.
            Internacionalismo: os Estados constituem-se como  empreendimento políticos ligado à ascensão e consolidação do Capital, sendo, portanto, expressão de um processo de dominação e espoliação; o anarquista, ao lutar pela emancipação dos trabalhadores e pela construção de uma sociedade libertária não pode se limitar a uma ou a algumas dessas unidades geopolíticas (Estado-país). Daí a defesa de um internacionalismo globalizado.
            Ação direta: as massas devem construir a revolução gerindo o processo como obra delas próprias. A ação direta se traduz principalmente nas atividades de propaganda: jornais, revistas,  literatura e teatro. Tem o intuito despertar a consciência das contradições sociais a que estão submetidas, fazendo com que o desejo e a consciência da necessidade da revolução surja em cada um dos indivíduos. Outro viés importante é o da educação, formal ou informal.
            Sustentado por esses quatro princípios fundamentais o Anarquismo, enquanto princípio gerador, pode-se afirmar: é um paradigma de análise político-social, uma vez que existe apenas um único Anarquismo que assume diferentes formas de interpretação da realidade e de ação de acordo com o momento e  condições históricas em que é aplicado.
            Assim, qual é o paradigma anarquista em educação?
            A educação tanto formal quanto informal sempre teve grande valor no pensamento anarquista para a transformação da sociedade. 
            Começando como uma critica a educação burguesa tradicional, tanto a oferecida pelo seu aparelho estatal quanto a educação mantida por instituições religiosas. A principal acusação sobre o sistema vigente é a de que a escola – com a sua propalada neutralidade – é na realidade arbitrariamente ideológica. O atual sistema simplesmente se dedica a reproduzir as estruturas cruéis de dominação e exploração, doutrinando os alunos a ocuparem seus lugares já predeterminados. Assim a educação tem um caráter ideológico que é mascarado pela sua aparente "neutralidade".
            Em vista disso a Pedagogia Libertária  assume tal caráter, no entanto coloca-o não a serviço da manutenção dessa sociedade, mas sim de sua transformação, despertando nos indivíduos a consciência da necessidade de uma revolução social. 
            A suposta liberdade individual como meio (característica das perspectivas liberais) redundará  em um modelo de escola cuja  característica principal é perpetuar teorias burocráticas que impedem as manifestações das singularidades instruindo apenas para classificar, portanto, excluir.
            A corrente de pensamento Bakuniana tem a liberdade como fim. A liberdade é conquistada e construída socialmente, a educação não pode partir dela, mas pode, deve, chegar a ela. Uma vez que  o desenvolvimento de todas as coisas, e por conseqüência da educação, implica a negação sucessiva do ponto de partida, este princípio deve enfraquecer-se à medida que avançam a educação e a instrução, para dar lugar à liberdade ascendente.
            Toda educação racional nada mais é, no fundo, do que a imolação progressiva da autoridade em proveito da liberdade, onde esta educação  tem como objetivo final formar homens livres, cheios de respeito e de amor pela liberdade alheia. Assim, o primeiro dia da vida escolar, se a escola aceita as crianças na primeira infância, quando elas mal começam a balbuciar algumas palavras, deve ser o de maior autoridade e de uma ausência quase completa de liberdade; mas seu último dia deve ser o de maior liberdade e de abolição absoluta de qualquer vestígio do principio animal ou divino da autoridade.
            A educação não pode ser um espaço de liberdade em meio à coerção social; pois constituir-se-ia em uma ação inócua e os efeitos da relação do indivíduo com as demais instâncias sociais seria muito mais forte. A educação anarquista partindo do princípio de autoridade insere-se na sociedade e coerente com seu objetivo de crítica e transformação social não faz senão ultrapassar aquela autoridade superando-a.
            A construção coletiva da liberdade é um processo no qual ocorre paulatinamente a  des-construção, por assim dizer, da autoridade. Esse processo, a Pedagogia Libertária o assume como sendo uma atividade ideológica. Como não há educação neutra, pois toda educação é fundamentada numa concepção de homem e de sociedade, é necessário, pois definir de qual homem e de qual sociedade estamos a falar. A Educação Libertária  conduz o homem a comprometer-se não com a manutenção da sociedade de exploração, mas sim engajado na luta e na construção de uma nova sociedade. Portanto pode-se afirmar que o individuo assim criado seria um desajustado, por assim dizer, para os padrões sociais da educação contemporânea. A  Educação Libertária constitui-se, assim, numa educação contra o Estado, alheia, portanto, aos sistemas públicos de ensino.

REFERÊNCIAS

BAKUNIN, Mikhail Alexandrovich. Deus e o Estado. São Paulo: Imaginário, 2000.

BELTRÃO. Ierecê  Rego. Corpos dóceis, mentes vazias, corações frios. São Paulo: Imaginário, 2000. 96 pág.

LIPIANSKY. Edmond-Marc. A Pedagogia Libertária. São Paulo. Imaginário: 1999. 76 pág. (Coleção Escritos Anarquistas).

WOODCOCK, George. História das Idéias e Movimentos Anarquistas. 2 Vol  (Vol I A Idéia – Vol II O Movimento). Porto Alegre: LPM,2002. 273/313 pág.

Max Stirner: "O único e a sua propriedade"

"O único e a sua propriedade"
(Max Stirner)


As eras pré-cristã e cristã perseguem objetivos distintos; uma quer idealizar o real, a outra realizar o ideal; a primeira procura o “espírito santo”, a última, o “corpo glorificado”. Assim, a primeira termina com a insensibilidade ao real, com o “desprezo pelo mundo”; a última chegará ao fim com a rejeição do ideal, com o “desprezo pelo espírito”.
A oposição do real ao ideal é irreconciliável e um nunca pode se transformar no outro: se o ideal se tornasse o real, não seria mais o ideal; e, se o real se tornasse o ideal, seria apenas o ideal, mas de forma alguma o real. A oposição dos dois não pode ser superada a não ser que se aniquile ambos. Apenas neste “se”, a terceira parte, a oposição encontra seu fim; de qualquer outra forma a idéia e a realidade nunca conseguirão coincidir. A idéia não pode ser realizada e permanecer idéia, mas é realizada quando morre como idéia; e o mesmo ocorre com o real.
Mas agora temos diante de nós os antigos, partidários da idéia e os modernos, partidários da realidade. Nem uns nem outros podem se livrar da oposição e ambos apenas anseiam: uns pelo espírito e, quando este anseio
do mundo antigo parecia estar satisfeito e este espírito ter chegado, os outros imediatamente passam a ansiar pela secularização deste espírito, que deve permanecer para sempre como uma “aspiração religiosa”. A aspiração religiosa dos antigos era a santidade, a aspiração religiosa dos novos a corporeidade.
Mas, assim como a antigüidade tinha de terminar se seu anseio fosse satisfeito (porque consistia apenas do anseio), a corporeidade nunca mais pode ser alcançada dentro do círculo da cristandade. Assim como o traço de santificação ou purificação permeia o mundo antigo (as abluções etc.), o da incorporação permeia o mundo cristão: Deus mergulha neste mundo, torna-se carne e quer redimi-lo, ou seja, preenchê-lo consigo mesmo; mas, como ele é “a idéia” ou “o espírito”, no fim, as pessoas (Hegel, por exemplo) introduzem a idéia em tudo, no mundo, e provam “que a idéia, a razão está em tudo”. Àquele identificado pelos estóicos pagãos como “o sábio” corresponde “o homem” na concepção atual, ambos seres descarnados. O “sábio” irreal, este “sagrado” sem corpo dos estóicos, tornou-se uma pessoa real, um “sagrado” corpóreo em Deus tornado carne; o “homem” irreal, o eu sem corpo, tornar-se-á real no eu corporal, em mim.
Perpassa o cristianismo a questão sobre a “existência de Deus”, a qual, levantada repetidas vezes, confirma que o anseio pela existência, a corporeidade, a personalidade, a realidade, ocupava incessantemente o coração porque nunca encontrou uma solução satisfatória. Finalmente, a questão sobre a existência de Deus caiu por terra, apenas para ser levantada de novo na proposição de que o “divino” tinha existência (Feuerbach). Mas isto também não tem existência, e o último refúgio, o de que o “puramente humano” seja realizável, não se sustentará por muito mais tempo. Nenhuma idéia tem existência, porque nenhuma é capaz de corporeidade. A disputa escolástica entre o realismo e o nominalismo tem o mesmo conteúdo; em resumo, isto se estende por toda a história cristã, e não pode terminar nela.
O mundo cristão está trabalhando para realizar idéias nas relações singulares da vida, nas instituições e leis da igreja e do Estado; mas elas resistem, e sempre guardam para si algo não encarnado (não realizável). Ainda assim, esta encarnação é perseguida sem descanso, não importa em que grau a corporeidade constantemente deixe de se realizar.
As realidades importam pouco para o realizador, pois o que é de suma importância é que sejam realizações da idéia. Assim, ele está sempre examinando mais uma vez se o realizado incorpora verdadeiramente a idéia, seu cerne; e, ao testar o real, ele ao mesmo tempo testa a idéia, se é realizável como ele a pensa, ou se é apenas pensada incorretamente por ele, e, por esta razão, de forma inviável.
O cristão não deve mais importar-se com a família, o Estado etc. como existências; os cristãos não devem se sacrificar por estas “coisas divinas” como os antigos, mas elas devem apenas ser utilizadas para tornar o espírito vivo neles. A família real tornou-se indiferente e ideal, que seria então a “verdadeiramente real”, deve surgir dela: uma família sagrada, abençoada por Deus, ou, segundo o raciocínio liberal, uma família “razoável”.
Com os antigos, a família, o Estado, a pátria, etc., são existências divinas; com os novos, ainda esperam pela divindade, como existências apenas pecaminosas, mundanas, e ainda têm de ser “redimidas”, ou seja, tornar-se verdadeiramente reais. Isto tem o seguinte significado: a família etc. não é o existente e real, mas o divino, a idéia, é existente e real; se esta família se tornará real absorvendo o verdadeiramente real — a idéia — ainda não se sabe. Não é tarefa do indivíduo servir à família como o divino, mas, inversamente, servir ao divino e trazê-lo à família ainda não divina, sujeitar tudo em nome da idéia, fincar a bandeira da idéia em toda parte, levar a idéia à eficácia real. Mas, como a preocupação do cristianismo, assim como a da antigüidade, é com o divino, sempre chegam a isto, apesar de seguirem trilhas opostas. No fim do paganismo o divino torna-se o extramundano, no fim do cristianismo, o intramundano. A antigüidade não consegue colocá-lo totalmente fora do mundo e, quando o cristianismo realiza esta tarefa, o divino imediatamente anseia por voltar para o mundo e deseja “redimir” o mundo. Mas no cristianismo isto não acontece e não pode acontecer, que o divino como intramundano torne-se realidade o próprio mundano: resta muito que permanece e deve permanecer impenetrado como o “mau”, irracional, acidental, “egoísta”, o “mundano”. O cristianismo começa com Deus tornando-se homem e realiza seu trabalho de conversão e redenção durante todo o tempo para preparar para Deus uma recepção em todos os homens e em tudo o que é humano, e penetrar tudo com o espírito: aferra-se a preparar um lugar para o “espírito”. Quando a ênfase foi finalmente posta no homem ou na humanidade, foi mais uma vez a idéia “eternamente pronunciada”: “O homem não morre!”
Achava-se que a realidade da idéia havia sido encontrada: o homem é o eu da história, da história do mundo; é ele, este ideal, que realmente se desenvolve e portanto se realiza. Ele é o verdadeiro real e corporal, pois a história é seu corpo, na qual os indivíduos são apenas os membros. Cristo é o eu da história do mundo, até mesmo da pré-cristã; na acepção moderna, é o homem. A figura do Cristo se transformou na figura do homem: é o homem como tal, o homem pura e simplesmente como “ponto central” da história. “No homem”, o início imaginário volta porque “o homem” é tão imaginário quanto Cristo. “O homem”, como o eu da história do mundo, fecha o ciclo das acepções cristãs.
O círculo mágico do cristianismo seria quebrado se a difícil relação entre a existência e a vocação, ou seja, entre eu como sou e eu como deveria ser, cessasse; persiste apenas como o anseio da idéia por sua corporeidade e desaparece com a remitente separação das duas: apenas quando a idéia permanece — idéia mesmo, já que o homem ou a humanidade são de fato idéias sem corpo, o cristianismo ainda sobrevive. A idéia corporal, o espírito corporal ou “completo”, flutua diante do cristão como “o fim dos dias” ou como o “objetivo da história”; não lhe é co-presente.
O indivíduo pode apenas participar na fundação do Reino de Deus ou, segundo a noção moderna da mesma coisa, no desenvolvimento e na história da humanidade; e apenas na medida em que participa nisso, aplica-se a ele um valor cristão, ou segundo a expressão moderna, humano; para o resto, ele é poeira e um saco de vermes.
A idéia de que o indivíduo é para si próprio uma história do mundo e faz parte do resto da história do mundo, vai além do cristianismo. Para o cristão, a história do mundo é a coisa mais elevada, porque é a história de Cristo ou “do homem”; para o egoísta apenas sua história tem valor, porque ele quer desenvolver apenas a si mesmo, não à idéia de humanidade, não ao plano de Deus, não aos propósitos da Providência, não à liberdade e assim por diante. Ele não se vê como uma ferramenta da idéia ou um recipiente de Deus, ele não reconhece nenhuma vocação, ele não acredita que existe para o desenvolvimento da humanidade e que tem de contribuir para ele com seu óbolo, mas ele vive, não se importando com quão bem ou mal a humanidade irá passar assim. Se não desse margem à confusão com a idéia de que um estado de natureza deve ser admirado, poder-se-ia citar Drei Zigeuner [Três ciganos] de Lenau. O que sou eu no mundo para realizar idéias? Fazer minha parte através de minha cidadania, digamos, para a realização da idéia “Estado”, ou através do casamento, como marido e pai, para dar existência à idéia da família? O que tem essa vocação a ver comigo! Vivo em conformidade com uma vocação tanto quanto a flor cresce e produz fragrância em conformidade com uma vocação.
O ideal “o homem” é realizado quando a acepção cristã se inverte tornando-se a proposição: “eu, este único, sou o homem”. A questão conceitual “o que é o homem?” transformou-se então na questão pessoal “quem é o homem?”. Com “o que” o conceito era procurado, para realizá-lo; com “quem” não é absolutamente mais uma questão, mas a resposta está pessoal e imediatamente à mão em quem pergunta: a questão responde a si própria. Dizem de Deus, “não deis nomes”. Isto se aplica a mim: nenhum conceito me expressa, nada do que é designado como meu ser me esgota; são apenas nomes. Da mesma forma, dizem de Deus que ele é perfeito e que não tem nenhuma vocação para buscar a perfeição. Isto também se aplica a mim.
Eu sou dono de meu poder, e o sou quando me sei único. No único, o próprio regressa para seu criativo nada do qual nasceu. Todo ser mais elevado acima de mim, seja Deus, seja homem, enfraquece o sentimento de minha singularidade e empalidece apenas diante do sol desta consciência. Se eu me ocupo de mim mesmo, o único, minha ocupação repousa sobre seu criador transitório e mortal, que se consome, e eu posso dizer: Eu fundo minhas coisas em nada***.
Notas
* Der Einzige, terceira e derradeira parte de Einzige und Eizegentum (O único e sua propriedade), de Max Stirner, publicado em 1844. Traduzido do inglês por Maria Brant. Revisado e confrontado com o original alemão por Dorothea Voegeli Passetti.
***"’Ich hab’ Mein’ Sach’ auf Nichts gestellt’, “Eu fundo minhas coisas em nada”, é o verso de abertura do poema Vanitas! Vanitatum vanitas!, de Goethe, usado por Max Stirner como frase de abertura e encerramento de O único e sua propriedade, e ocasionalmente alude a ela durante o livro”. (Nota de David Leopold para a edição em inglês, The ego and its own. United Kingdom, Cambridge University Press, 1995, p. 326).
(1) Século XIX, autor de um único livro e alguns escritos esparsos anarquizantes.


STIRNER, Max. O único e a sua propriedade. (In: VERVE – Revista semestral do NU-SOL Núcleo de Sociabilidade Libertária / Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP, N° 2 (outubro 2002). p. 264-274).